MINHAS PRÓXIMAS CORRIDAS

domingo, 8 de novembro de 2015

QUANDO SE CORRE PARA A ALMA...

Suor e poesia: essa combinação, que dá nome a meu blog, pode parecer estranha, já me disseram, inclusive, que  não há nada de poético nela. Poderia dizer que é a combinação de minha formação acadêmica com minha paixão pela corrida. Mas não é só isso. É que vejo uma relação entre as duas todas as vezes em que vivo algumas experiências cujas emoções e sensações só a corrida pôde, até hoje, me proporcionar.

XC Run Búzios 42km / 2015

Pela segunda vez fiz a prova solo, porém, assim como "a gente não se banha duas vezes no mesmo rio", porque suas águas nunca são as mesmas, nós também não somos os mesmos quando repetimos uma corrida. Desta vez, eu não tinha a inocência da primeira, quando se vai  ara o desconhecido; mas nem por isso o encantamento foi menor. Desta vez,  eu tinha um pouquinho mais de experiência, adquirida nos treinos e nas corridas que fiz nos últimos 12 meses; mas nem por isso os morros deixaram de ser morros, nem as areias deixaram de ser areias. Desta vez, eu tinha uma cabeça mais tranquila, um coração menos ansioso; mas nem por isso deixou de ser uma maratona, com seus 42 km; nem por isso o corpo deixou de ir ao esgotamento e a cabeça comandar até o fim. Nem por isso as lágrimas, em determinado momento, deixaram de querer brotar para extravasar aquela sensação de liberdade.

Esses dias li uma frase com a qual me identifiquei muito: "Ela aprendeu o que é liberdade quando descobriu quais eram suas prisões". Sei que ainda tenho prisões das quais preciso me libertar, mas um delas se chamava obesidade. Somente depois que emagreci, descobri que ela me aprisionava em um corpo que só exercitava a mente. Era como se eu buscasse compensar com os estudos o que negligenciava com o corpo. Hoje entendo a necessidade de equilíbrio entre corpo e mente. Hoje represento isso com SUOR e POESIA.

Depois que emagreci, conheci algumas liberdades, e a corrida talvez seja a mais significativa. Quando estou em uma corrida como esta de Búzios, a sensação de liberdade que sinto é indescritível. Somos nós e a natureza. Ela nos desafia com seus obstáculos, mas também nos premia com suas belezas. No ano passado, o sol tornou tudo mais lindo, mas nos castigou. Neste ano, o clima estava perfeito, mas a lama resultante da noite chuvosa tornou as subidas dos morros muito escorregadias e pegajosas - parecia que os morros tinham mãos que queriam nos prender pelos calcanhares. Também achei que a maré estava mais alta do que no ano passado; mas, depois de 37 km desgastantes, entrar naquelas águas foi um alívio para o corpo, para a musculatura cansada. Não avistamos Búzios do alto do Morro do Mirante, havia uma neblina densa escondendo tudo, mas nem por isso a sensação de ter conquistado as alturas foi menos gratificante.

Liberdade de saber que nós podemos ir de quilômetro a quilômetro, no nosso ritmo, respeitando nossos limites, nossas emoções. De nos questionarmos o que estamos fazendo ali e, ao mesmo tempo, encontrarmos resposta para essa pergunta. Resposta única, intransferível. Cada um sabe por que corre, o que busca com/na corrida. Com o tempo, ela vai indicando os caminhos a seguir. E o caminho está sempre por ser feito. Não há completude. Há bifurcações e possibilidades de escolhas. Somos seres em busca de um algo a mais; um algo a mais que preencha nossa vida de significados, que vá além da rotina da vida que nos liga no modo automático. A corrida para mim é este algo a mais. Ela já deixou de ser por saúde há algum tempo. Tenho consciência disso.

5 km, 10 km, 15 km corremos por saúde; 40 km, 50 km...100 km corremos para a alma.  É assim que vou me preenchendo aos pouquinhos. Volto sempre recarregada. Pronta para dar continuidade à preparação dos próximos sonhos. Hoje, meu sonho-mor de 100 km ainda me parece só um sonho, mas sei que os meses que virão me deixarão em condições de tentar transformá-lo em realidade. Minha alma anseia por isso. Não posso deixar minha alma na mão...


terça-feira, 21 de abril de 2015

A ULTRAMARATONA... AS MONTANHAS...


E foi assim que eu cheguei "a lugares inusitados dentro de mim".


Para mim hoje é mais importante chegar mais longe do que chegar mais rápido. Por isso a ultramaratona. E também chegar mais alto; daí as montanhas. Demorar-me mais pelo caminho, estar mais tempo comigo mesma, com meu corpo, meus pensamentos e sentimentos... Estar mais tempo com a natureza. Ser parte dela. Não como algo que vislumbro de longe e maravilhada vejo como “aquilo lá” é bonito. Mas estar dentro dela, sentindo suas pedras e raízes sob meus pés; sentindo a sombra das árvores e os raios do sol; sentindo o frio e a escuridão; a água gelada ou refrescante dos riachos que atravesso. Sentir que eu vivo a natureza em mim.

Cravar os bastões no solo da montanha, buscando impulso para subir, subir, subir. Lentamente. Sentindo a respiração, o suor, os músculos pulsando. Os pedregulhos escorregando e o céu se aproximando. Sentir que a cabeça e o coração estão em paz; que o importante é a passagem por aquele caminho, no ritmo que me apraz. Olhar para trás  e perceber como tudo vai se tornando pequeno, pela altura, e gigante pela amplitude do horizonte que se abre. E quanto mais alto, mais a pequenez e a amplidão se comungam num cenário paradisíaco. Búzios me mostrou isso. Corupá me maravilhou com isso. Patagônia me fez transbordar com isso.

Chegar mais alto para mim significa chegar mais próximo do céu, da transcendência.
É uma busca. Hoje, como nunca, tenho certeza disso. A montanha é para mim a metáfora da busca de algo maior; algo que se demonstra ou que sinto após muitos quilômetros, após a escalada. Algo que se experimenta por segundos, quiçá minutos. Como um orgasmo. Como o barato de uma droga. Como o nirvana do budismo. E fica a memória daquela sensação tão boa, tão pura, tão forte e ao mesmo tempo tão sensível. Uma memória que faz com que eu queira mais, que eu queira repetir não a mesma experiência (que na verdade nunca seria a mesma), mas a mesma sensação. E por isso a busca segue. Os sonhos surgem. As metas são estabelecidas. Os treinamentos são feitos. E vale a pena tantos meses de dedicação, de sofrimento, de entrega para instantes tão fugazes? Sim, porque é na fugacidade desse instante que preencho todos os vazios que a vida cotidiana vai deixando. Volto plena e, quando os vazios começarem a gritar lá por dentro, sei que terei outra experiência incrível para me preencher.


A corrida é minha forma de autoconhecimento. É minha meditação. É onde busco meu ponto de equilíbrio; por meio dela expurgo todas as turbulências do dia a dia, do emprego, da vida em sociedade, da engrenagem louca do mundo moderno. Já quis ser rápida no começo. Mas com o tempo fui descobrindo que não era a velocidade que me preenchia. Comecei então a ir mais longe e a caminhos mais instáveis e irregulares. Caminhos que começaram a exigir de mim mais  atenção, mais concentração, mais força, mais tempo, mais cabeça. E vi que são os caminhos certos porque despertaram em mim mais emoção e por isso fazem de mim mais humanizada. Não vou dizer que me encontrei na corrida, porque esse encontro com nós mesmos é interminável. Mas eu me busco na corrida. E vou me encontrando aos pouquinhos... Há muitas montanhas pelo mundo esperando que eu vá lá buscar mais um pedacinho de mim... E eu irei! No tempo certo...

domingo, 19 de abril de 2015

DO TOPO DA PATAGÔNIA... DO MAIS FUNDO DE MIM MESMA...




Quando avistei o pórtico de chegada, comecei a chorar... Aqueles quase 70 km gritavam em cada músculo, em cada articulação, em cada pensamento. Era um grito dentro de mim, que se exteriorizava em forma de lágrimas. Lá por dentro eu queria esbravejar, deixar sair tudo o que foi se acumulando durante tantos meses de preparação. Gritava para mim mesma que eu havia conseguido, que todo esforço e disciplina tinham valido a pena. Quando entrei no "gargalo", naquele afunilamento das grades que levam ao pórtico, as lágrimas viraram soluços, que se confundiam com os aplausos de quem assistia à minha chegada. Pessoas que nunca vi e que nunca mais me verão davam-me parabéns, aplaudiam-me como se soubessem o porquê de eu estar ali. Mas não sabiam. Só eu sei. Por mais que eu tente dizer em palavras, o principal não consigo verbalizar. Está guardado aqui. Estará para sempre... 
Segui em meu trotezinho, e os metros finais pareciam passar em câmera lenta. Foi então que, ao atravessar o pórtico de chegada, ouvi alguém gritar meu nome. E naqueles segundos de confusão - o alívio do fim, o êxtase da superação, o esgotamento físico - identifiquei rostos conhecidos, rostos que há 8 dias me eram estranhos (exceto um), mas que passaram a ser tão íntimos. E de rostos sorridentes, avistei braços que me aconchegaram naquele instante único. Meu suor, minhas lágrimas, meus soluços foram compartilhados por aquelas pessoas  que por uma semana foram companheiras de viagem, amigos de histórias e sonhos. Eles, ali, depois de concluírem a prova deles, cansados, esperando por mim e pelo Rodrigo - que também fazia os 70km - fizeram valer ainda mais a minha vitória. Deixei-me estar nos braços deles por alguns instantes, soluçando minha conquista, meus medos vencidos, minha realização alcançada, meu corpo cansado... Adriana e Florian, Joel, Sandra e Beto, vocês foram de uma importância indescritível. Obrigada!

Escrevendo isso, uma semana depois, ainda vivo o êxtase da corrida. Ontem me falaram que eu ainda pareço meio abobalhada quando conto sobre a corrida. E estou mesmo. As 13 horas e meia de prova ainda pulsam em meu corpo - não tanto no corpo físico, muscular, que respondeu muito bem ao esforço a que foi submetido, mas principalmente no corpo emocional. Algo muda na vida da gente quando passa por experiências como essa que vivi. Não que mude na prática, a vida segue em seu ritmo desenfreado. Mas muda no jeito de vermos e sentirmos a vida e a nós mesmos. 


E relembro cada instante da prova: a ida ansiosa e receosa do frio; o encontro com colegas corredores; a largada no escuro; os primeiros quilômetros frios e iluminados por lanterninhas que pareciam vaga-lumes dançando na noite; o despertar do dia, colorindo o horizonte de um laranja roseado (ou seria de um rosa alaranjado?); as subidas (tantas), as descidas (muitas); a paisagem exuberante; o corpo que foi se cansando; a cabeça que teve que ir negociando com o corpo; a emoção que foi sendo controlada; a companhia de dois colegas corredores que viviam, à sua maneira, o mesmo sonho que eu: Jabes e Rodrigo. Passamos grande parte da prova juntos. Foi incrível!



Havia no trajeto uma subida muito íngreme, foi mais de uma hora subindo, subindo... De vez em quando eu olhava para trás para ver o cenário que ia se mostrando daquela altura toda... Lindo! E eu continuava subindo, subindo... Quando cheguei ao topo, pude contemplar aquela paisagem absurdamente exuberante. E comecei a descer, uma descida tão íngreme como foi a subida... Naquele momento eu comecei a chorar. Não era dor, não era medo. Era êxtase. Era prece. Era reconhecimento. Era agradecimento. Ali eu era uma formiguinha, um grão de areia em meio à natureza. Ali eu vi que valeu a pena ter sido tão forte na subida, simplesmente para me sentir tão frágil na descida... Ali foi o auge da prova, não só por ter alcançado o topo, mas por ter alcançado minha sensibilidade... Foi a minha epifania: o súbito momento eu que eu compreendi por que eu tinha que ir correr aquela prova, o momento que me fez sentir a realização de meu sonho, de que o que parecia impossível podia ser conquistado... 

O desejo da ultramaratona é muito mais do que a busca da superação física. O físico é apenas o caminho que usamos para ir ao encontro do que é mais forte em nós: nossa essência.  Não se explica racionalmente por que fazemos isso, por isso nos chamam de loucos.  Realmente não faz sentido aparente passar mais de 13 horas correndo, colocando o corpo tão em seu limite. É um desejo interno, uma vontade de ir cada vez mais adiante para encontrar um momento de êxtase, um momento de realização profunda, um momento de encontro com o que em nós parece sobre-humano. Parece que saímos do corpo e encontramos nosso espírito.  Aqueles que me perguntam minha colocação não entendem como é insignificante a classificação diante de tudo o que foi vivido e da metamorfose que se deu em mim. Aqueles que me perguntam se eu ganhei a corrida quase ficam sem resposta - não entendem como ganhei em vida e em humanidade.

E é assim que me sinto até hoje: em sintonia comigo mesma. Sabia que eu ia passar por uma experiência incrível, mas não sabia como ela terminaria. E foi simplesmente fantástico! Sei que quero muito mais -  mais em distância, mais em intensidade de vivências. Sei que preciso procurar outros sonhos, traçar novas metas... Continuar essa busca estranha e incrível de mim mesma... No mínimo, voltar lá ano que vem e tentar os 100 km. Quem sabe? Ou sonhar outros continentes... E outras paisagens. Outras emoções...


quarta-feira, 11 de março de 2015

30 DIAS... CONTAGEM REGRESSIVA PARA O SONHO DE 2015





30 dias.
1 mês exato.
Nem mais nem menos...


E todos os 175 dias de preparação até agora começam a gritar em minha mente, em meu corpo. Estão dizendo a mim que a base foi feita, que o alicerce está forte. Dizem que o corpo mudou, fortaleceu-se. Dizem que a mente mudou, deixou de ter tão insegura e imediatista.

 175 dias de muita musculação, muita consciência alimentar, muitos treinos de velocidade, de areia fofa, de subidas ao Convento e ao Moreno, de longões intermináveis. Foram duas provas-treino
lindas, duras, que me fizeram mais experiente, mais forte: os 42km de Búzios, com suas areias escaldantes, suas praias lindas, suas trilhas sinuosas; os 42km de Corupá (ah! Corupá!) – prova que me ensinou a encarar a solidão de uma prova longa, em 8h16 de montanha, de mata fechada, de lama...

Foram 175 dias vivendo o sonho da ultramaratona. Reconhecendo, nos músculos colocados constantemente à prova, as fraquezas que precisavam ser deixadas para trás. 175 dias cuidando do corpo físico, entregando-me totalmente aos conhecimentos da minha treinadora Helayne Montebelo, da minha nutricionista Carol Sessa, do meu fisiatra Fabrício Buzatto. 

E agora? Só faltam 30 dias...

As emoções já embolam na garganta. Há medo no ar... Nunca me sentirei totalmente preparada... Enfrentar o desconhecido sempre vai causar um friozinho na espinha. Não será apenas vencer 70km, mas 70km no cenário majestoso das montanhas da Patagônia. É experiência para ficar traçada nos músculos, nas retinas, na alma...

 30 dias...
Agora é a lapidação.
                                                               É o pente fino.
É fazer as malas e colocar nelas toda a vontade, 
toda a bagagem adquirida, 
todo o sonho que justificou os 175 dias de entrega total...

Contagem regressiva para aquela que será minha experiência mais intensa até hoje; para aquela que vai me transformar (espero) não apenas na ultramaratonista que quero ser, mas numa pessoa mais resistente. Capaz de vencer medos, vencer fraquezas, superar corpo e mente para chegar ao êxtase de atravessar a linha de chegada e dizer  “Eu consegui”! Será muito mais do que uma superação física. Tem sido, sempre, a busca de mim mesma...

"Ao correr tão longas e extenuantes distâncias eles [os ultramaratonistas] respondem uma chamada do mais profundo de seu ser – uma chamada que responde quem realmente eles são.” (David Blaikie).


sábado, 17 de janeiro de 2015

DE COISAS INOMINÁVEIS...

Por que a Patagônia? Já me perguntaram algumas vezes... Além de serem 70 km, ainda precisa ser de montanhas e no frio? Já me perguntaram também... Na verdade, nunca parei para pensar no porquê da Patagônia, porque não é muito racional... 
Tenho estado muito emotiva com essa minha empreitada. Acho que a mudança do ano trouxe a proximidade da data. Pensar que três meses me separam do grande dia e voltar aos treinos intensos têm me feito temer e desejar cada dia mais o mês de abril. Constatar a pequenez humana diante da grandeza do cenário me impressiona. As fotos da edição passada tiram de mim lágrimas de emoção.  Choro de verdade quando vejo o que vou presenciar. Como se eu “pré-sentisse” o que vai ser estar lá.
 
Se me perguntarem o que eu busco com isso (que para muitos é uma loucura), acho que as palavras não alcançariam uma resposta tão satisfatória quanto as lágrimas que me saem apenas de ver a paisagem de lá. Dá um nó na garganta. Lembro a professorinha do interior de Minas que saiu de casa obesa para fazer doutorado e começou a correr. Descobriu na corrida uma vida que o mundo acadêmico sozinho não preenchia. Não é provar nada para ninguém; nem para mim mesma. Não é vencer a natureza; é entrar em comunhão com ela. É buscar algo que não se nomeia. Algo que está aqui dentro de mim pedindo para viver e que precisa ter a chance de sair de mim e se expandir para voltar para mim e me completar um pouco mais...
 
Há um trecho que fala sobre ultramaratonistas que diz um pouco sobre isso:
“Mas como afirmam poetas, apóstolos e filósofos desde os mais remotos tempos, existe muito mais na vida que a simples lógica e o bom senso. Os ultramaratonistas percebem isso instintivamente. E eles sabem algo mais que está perdido no sedentarismo. Eles entendem, talvez mais que ninguém, que a porta para o espírito se abrirá  com os esforço físico. Ao correr tão longas e extenuantes distâncias eles respondem uma chamada do mais profundo do seu ser – uma chamada que responde quem eles realmente são.” (David Blaikie)
 
Eu ainda não sei o que é ser uma ultramaratonista. Sei o que é me preparar para tentar ser. E me lembro, quando treinei para minha primeira (e segunda e terceira e quarta) maratona, que lia muito que treinar para maratona significaria só pensar a respeito dela, abdicar de muitas coisas por ela, ficar chata e só falar sobre ela, dedicar de verdade aos treinamentos... E agora? Repito a mesma (mas tão diferente) coisa. Vivo, respiro os 70 km, só que mais solitária e introspectivamente. E nem tenho noção do que é estar preparada para tal empreitada. Sigo minhas planilhas com afinco. Tenho feito tudo o que me é recomendado. Mas o que é estar preparado? Não sei mesmo! Acho que nunca vou me sentir preparada de verdade. Mas acho que tenho ouvido essa “chamada do mais profundo do meu ser”. Preciso ir lá e viver essa experiência para sentir que o corpo aguenta e completar minha alma.

Para alguns é sinônimo de sofrimento desnecessário. Talvez alguns outros me entendam que, apesar do sofrimento (sim, porque há sofrimento), é um modo de aventurar-se  um pouco pela vida afora e muito pela vida “adentro”. É a realização íntima pela superação física.
 
É a professorinha do mundo das Letras buscando se completar com suor e poesia.
 

 


 

domingo, 11 de janeiro de 2015

DE ESCULTURAS... E CORREDORES... E ULTRAMARATONAS...

“Mas você não tem medo?”
Eu estou morrendo de medo... Mas vou...

Ouvi essa pergunta esses dias, a respeito dos 70 km da Patagônia. É claro que tenho medo! Sempre terei, todas as vezes em que a corrida for mais do que um simples treino de verão no calçadão. E como é bom ter esse medo! Talvez fosse melhor dizer respeito. Respeito as corridas. As longas em especial, que são as que me atraem. Respeito-as demais, porque elas exigem de mim a constante capacidade de superação. Ter medo e respeitar, entretanto, motivam-me a me preparar, a procurar estar minimamente pronta para as empreitadas que seleciono. Não são as corridas-alvo que me fazem, elas apenas coroam a minha formação. É o dia a dia que me torna uma corredora, que vão me moldando, formando-me, física e psicologicamente.

Todas as vezes em que posto nas redes sociais: “partiu, academia!”, “treino de tiros”, “treino de areia”, “treino de morro”, “treino no Convento”, “longão de 30”, “37”, estou tentando me transformar na ultramaratonista que tanto quero ser. Cada dia é como se eu estivesse percorrendo alguns metros da corrida-alvo.


Michelângelo, o escultor da famosa estátua de Davi, quando lhe perguntaram como ele conseguia esculpir um cavalo em uma pedra de mármore, disse que o cavalo já estava lá, bastava a ele retirar do mármore o que não era parte do cavalo. Assim penso que é o trabalho de preparação. Sinto que, pelas minhas características, pela minha personalidade, há uma ultramaratonista dentro de mim. É preciso fazê-la aparecer por meio do trabalho lento e cuidadoso de tirar de mim o que há de excesso e ir lapidando. Devagar, com cuidado, para que não seja tirado nada que possa fazer falta; para que a ultramaratonista saia o mais perfeito possível que minha pedra de mármore permitir.

É trabalho diário... Faz 117 dias que considero que o projeto ultramaratona começou. Faço registros diários sobre os treinos. Anoto o rendimento e alguma ou algumas impressão(ões) sobre o treino: se foi bom ou ruim, o que senti, comparo com anteriores... Agora que passei por três semanas de descanso, reduzindo quilometragem e apenas fazendo treinos leves de manutenção (acho que posso dizer assim), parei para rever algumas anotações desses 117 dias. Claro que houve dias bons e ruins. Às vezes penso que os dias considerados ruins são mais importantes do que os bons, pois eles ensinam mais. Eles apontam as fragilidades que precisam ser mais trabalhadas...

Amanhã retomo o ritmo normal dos treinos. Não sei o que me aguarda. É opção da minha treinadora não me passar a planilha antecipadamente. Ela vai me passando aos poucos. Mas imagino que o que vem pela frente não vai ser fácil. Na verdade, precisa não ser fácil. Faltam três meses para a corrida e sei que ainda tenho que sofrer muito nos treinos para a ultramaratonista começar a aparecer na pedra de mármore. Às vezes a vislumbro, como uma sombra, um vulto lá dentro do bloco de pedra, como se o mais grosso já tivesse sido retirado. Ela está prestes a começar a aparecer, mas o trabalho mais minucioso está por vir. Retirar a porção certa, sem ferir; sem atingir o que já está formado. A escultora-chefe (há outros escultores no processo: nutricionista, fisiatra...) é minha treinadora, mas, diferentemente de Michelângelo, não foi ela que foi ao cavalo, o cavalo foi até ela pedindo para sair do bloco de mármore. E, também diferentemente do mestre renascentista, ela dá o comando, mas quem é responsável pelo cinzel sou eu. É quase uma autolapidação, porque quem faz o treino ou não sou eu, se sigo o comando ou não sou eu, se como adequadamente ou não sou eu, se me suplemento segundo as orientações ou não sou eu... Com o tempo tenho aprendido a usar o cinzel adequadamente, vou amadurecendo a arte de esculpir em mim a corredora que a cada dia vou querendo ser...

Faltam três meses... Mais especificamente 89 dias... Já mudei muito. E tenho muito ainda a mudar. O medo vai me acompanhar até o grande dia, porque os treinos de tiros doem, o treinos de areia doem, os treinos de morro doem, os longões doem... Mas quem disse que as pedras de mármore ao serem atingidas pelo cinzel do escultor não sentem dor? Talvez nunca tenham perguntado isso a elas. Mas as lindas postagens sobre treinos diários camuflam os sacrifícios e desgastes que precisamos passar por eles para nos tornarmos corredores, corredores maratonistas, corredores ultramaratonistas... Se nossos músculos precisam do desgaste para se recuperarem e fortalecerem, é isto que precisamos fazer com eles: desgastá-los, colocá-los à prova.

Mas não quero que pareça algo desprazeroso. Apenas quero dizer eu não nascemos prontos, sempre nos tornamos aquilo que queremos e lutamos para ser... Faço porque gosto do desafio, gosto deste processo sempre in progress, este vir a ser constante a que me proponho. Faço porque acredito que na vida temos que ter sempre uma meta a buscar, seja ela em que área for... A minha, pelo menos por agora, está na corrida... (Já esteve nos estudos, por exemplo, e era necessária a mesma e diferente constante preparação até chegar ao fim do doutorado.) E acredito que após o cavalo, terei outra escultura para tirar de dentro de mim... Mas isso é assunto para outra crônica e outro tempo e outras preparações e cinzéis e escultores...







segunda-feira, 17 de novembro de 2014

CORRER OU NÃO CORRER BÚZIOS? EIS A QUESTÃO...



Correr ou não correr Búzios? Eis a questão...

Durante alguns dias, essa foi a pergunta que me fiz, depois de ter sentido uma dor no joelho na maratona de Salvador no final de agosto. A inscrição para Búzios já tinha sido feita e a dor permaneceu alguns dias, mexendo não só com meu corpo físico, mas também com meu corpo emocional.  Última semana de agosto descansando de Salvador, primeira semana de setembro descansando da dor... E vi os dias se passando e a sensação de que era para eu estar começando a treinar pesado para Búzios começou a me deixar angustiada. Desisti... Coloquei minha inscrição à venda. Falei com alguns amigos, anunciei minha inscrição e esperei.
O coração ficou triste... Búzios era um sonho... Era para ter sido minha maratona-foco para 2014, mas acabei me dedicando à de Salvador...  Pronto, oportunidade perdida. Bola pra frente...

Mais uns dias se passaram. Inscrição para minha primeira ultramaratona na Patagônia realizada e, após uma conversa com uma moça que fez essa prova ano passado, Búzios voltou a fazer parte dos meus pensamentos. Ela me disse que seria muito bom se eu passasse por algumas maratonas trail antes de encarar a Patagônia. Fiquei com isso na cabeça e a vontade de fazer Búzios voltou com toda força. O joelho estava silencioso e, numa espécie de coincidência de pensamentos, minha treinadora e eu resolvemos que eu devia, sim, fazer Búzios: como fosse possível, caminhando mais do que correndo, se fosse necessário. Era para viver a experiência de uma prova difícil, era para perder a inocência nas provas duras...

Ainda bem que eu não tinha conseguido repassar minha inscrição. Começamos, então, a treinar: areia fofa e  morros... Foram vários treinos, mas três deles muito marcantes: as trilhas do Mestre Álvaro, os 30 km de morros e o último treino longo de morros com areia fofa no final.  Esses treinos me deram certa segurança e fui para Búzios para fazer um treino de luxo para a Patagônia...

XC Run Búzios é uma prova muito falada e respeitada. Conhecida como uma das mais difíceis da modalidade. Fui com medo, mas fui. Fui sabendo de minhas limitações, mas fui. Fui com o coração repleto de sonhos. Fui para experimentar meus limites físicos e emocionais...

E amanheceu lindo! Um azul intenso no céu anunciava o dia quente que enfrentaríamos. Acordei ansiosa, uma mistura de euforia e medo se diluíam na água que enchia minha mochilinha de hidratação. E lá fui eu encarar os 42 km da Maratona Cross Country de Búzios.

Comecei com amigos, cada um com sua experiência cravada na pele, nos anos, nas histórias.  Achei a primeira parte da prova – os primeiros 10km – bem chata de fazer. Quase toda por ruas de paralelepípedos, num sobe e desce sem fim. Somente no fim, por volta dos 9 km chegamos a uma praia e, aí, o cenário foi se anunciando cada vez mais lindo.

No segundo trecho, começaram as trilhas e as emoções mais fortes. Os amigos, cada um encontrou seu ritmo, e eu fui seguindo o ritmo que o corpo permitia e o coração desejava. Sobe trilhas, desce trilhas e chega à praia. Alguns quilômetros de areia sob um sol que começava a arder sobre nós e em nós...

Na transição dos 20 km eu me sentia bem e estava prestes a fazer um trecho que eu já conhecia, pois há dois anos fiz a prova em quarteto e percorri a terceira parte da prova. Nela está o morro mais temido, bem no início, um morro que você faz se amparando nas encostas, agarrando nos caules, impulsionando o corpo com as mãos no chão. Mas quando chega ao topo tem uma das vistas mais bonitas de Búzios, com direito a musiquinha ao vivo e tudo. A gente para, curte o visual, tira foto, respira fundo, ouve o berimbau, a capoeira e segue... Hora de descer... Lembro-me de alguns pensamentos enquanto eu me concentrava nas irregularidades do solo que pisava. Um desses pensamentos era que eu estava bem e que ia conseguir concluir a prova bem. Outro foi um momento de agradecimento por estar ali podendo viver aquela experiência... A gente vive tantas emoções enquanto corre, principalmente numa corrida longa em que dá tempo de pensar em tanta coisa...

Na transição dos 30 km eu pensei: agora são só mais 10 km... Mas eu não tinha noção do que me aguardava... E o que me aguardava me colocou à prova em todos os sentidos: físicos e emocionais. Além de mais trilhas, o que mais marcou esse trecho foi a maré alta e as pedras... Eu, que tanto medo tenho do mar, encarei a maré alta, na altura dos joelhos, batendo contra as pedras... Fiz uma parte do trecho com o coração nas mãos, com medo, pois em alguns lugares não dava para ver onde pisava, só sabia que eu tinha que alcançar as pedras logo adiante... Dei graças a Deus quando voltei para as trilhas, achando que a aventura maior tinha passado. Mas, por volta do km 39, lembro-me da moça que trabalhava como staff apontando para a direita e dizendo: agora é só seguir pelas pedras... Quando eu virei à direita, cheguei novamente à praia e avistei as pedras a que ela se referiu. Coração disparou novamente, era hora de encará-las – escorregadias, cheias de limo, soltas, perigosas -, exigindo do corpo cansado de quase 40 km percorridos uma atenção e equilíbrio muito grandes. Na verdade, a atenção exigida era tão grande que dava até para esquecer o cansaço físico... E lá estava eu, enfrentando as pedras no caminho... Drummond que me dê licença, mas havia muitas pedras naquele meu caminho. Hoje penso que cada pedra ultrapassada representa uma superação vivida. Sabe aqueles obstáculos que a gente vive? As dores físicas? As dores emocionais? As lesões e os medos? Expurguei todos eles ali naquelas pedras... Ficaram para trás, embora façam de mim quem eu sou hoje...
 Cada pedra que pisei, cada trilha que escalei, a maré que enfrentei ajudaram a fortalecer a mudança que vivencio em relação à corrida.  Hoje sou outra corredora, em busca de outras emoções. Emoções que exigem de mim mais do que um corpo em velocidade, mas um corpo em equilíbrio físico e mental... As distâncias nos permitem isso, as trilhas nos permitem isso, as dificuldades,  os desafios trail nos permitem isso...


Búzios foi a grande corrida de minha vida até hoje. Acho que a minha vida de corredora se dividirá em antes e depois de Búzios. Ali tive a certeza do que quero para mim a partir de agora... Atravessei a linha de chegada depois de 6 horas e 20 minutos. Cansada e feliz. Mais feliz do  que cansada. Superei minhas expectativas. Superei minhas emoções. Superei as pedras no caminho.




 “Jamais me esquecerei desse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas”
Jamais me esquecerei de que na minha vida de corredora
Teve Búzios no meio do caminho...