Eu estou morrendo de medo... Mas vou...
Ouvi essa pergunta esses dias, a
respeito dos 70 km da Patagônia. É claro que tenho medo! Sempre terei, todas as
vezes em que a corrida for mais do que um simples treino de verão no calçadão.
E como é bom ter esse medo! Talvez fosse melhor dizer respeito. Respeito as
corridas. As longas em especial, que são as que me atraem. Respeito-as demais,
porque elas exigem de mim a constante capacidade de superação. Ter medo e
respeitar, entretanto, motivam-me a me preparar, a procurar estar minimamente
pronta para as empreitadas que seleciono. Não são as corridas-alvo que me fazem,
elas apenas coroam a minha formação. É o dia a dia que me torna uma corredora,
que vão me moldando, formando-me, física e psicologicamente.
Todas as vezes em que posto nas
redes sociais: “partiu, academia!”, “treino de tiros”, “treino de areia”, “treino
de morro”, “treino no Convento”, “longão de 30”, “37”, estou tentando me transformar
na ultramaratonista que tanto quero ser. Cada dia é como se eu estivesse
percorrendo alguns metros da corrida-alvo.
Michelângelo, o escultor da famosa estátua de Davi, quando lhe perguntaram como ele conseguia esculpir um cavalo em uma pedra de mármore, disse que o cavalo já estava lá, bastava a ele retirar do mármore o que não era parte do cavalo. Assim penso que é o trabalho de preparação. Sinto que, pelas minhas características, pela minha personalidade, há uma ultramaratonista dentro de mim. É preciso fazê-la aparecer por meio do trabalho lento e cuidadoso de tirar de mim o que há de excesso e ir lapidando. Devagar, com cuidado, para que não seja tirado nada que possa fazer falta; para que a ultramaratonista saia o mais perfeito possível que minha pedra de mármore permitir.
É trabalho diário... Faz 117 dias
que considero que o projeto ultramaratona começou. Faço registros diários sobre
os treinos. Anoto o rendimento e alguma ou algumas impressão(ões) sobre o
treino: se foi bom ou ruim, o que senti, comparo com anteriores... Agora que
passei por três semanas de descanso, reduzindo quilometragem e apenas fazendo
treinos leves de manutenção (acho que posso dizer assim), parei para rever algumas
anotações desses 117 dias. Claro que houve dias bons e ruins. Às vezes penso
que os dias considerados ruins são mais importantes do que os bons, pois eles
ensinam mais. Eles apontam as fragilidades que precisam ser mais trabalhadas...
Amanhã retomo o ritmo normal dos
treinos. Não sei o que me aguarda. É opção da minha treinadora não me passar a
planilha antecipadamente. Ela vai me passando aos poucos. Mas imagino que o que
vem pela frente não vai ser fácil. Na verdade, precisa não ser fácil. Faltam
três meses para a corrida e sei que ainda tenho que sofrer muito nos treinos
para a ultramaratonista começar a aparecer na pedra de mármore. Às vezes a
vislumbro, como uma sombra, um vulto lá dentro do bloco de pedra, como se o
mais grosso já tivesse sido retirado. Ela está prestes a começar a aparecer,
mas o trabalho mais minucioso está por vir. Retirar a porção certa, sem ferir;
sem atingir o que já está formado. A escultora-chefe (há outros escultores no
processo: nutricionista, fisiatra...) é minha treinadora, mas, diferentemente
de Michelângelo, não foi ela que foi ao cavalo, o cavalo foi até ela pedindo
para sair do bloco de mármore. E, também diferentemente do mestre
renascentista, ela dá o comando, mas quem é responsável pelo cinzel sou eu. É quase
uma autolapidação, porque quem faz o treino ou não sou eu, se sigo o comando ou
não sou eu, se como adequadamente ou não sou eu, se me suplemento segundo as
orientações ou não sou eu... Com o tempo tenho aprendido a usar o cinzel
adequadamente, vou amadurecendo a arte de esculpir em mim a corredora que a
cada dia vou querendo ser...
Faltam três meses... Mais
especificamente 89 dias... Já mudei muito. E tenho muito ainda a mudar. O medo vai
me acompanhar até o grande dia, porque os treinos de tiros doem, o treinos de
areia doem, os treinos de morro doem, os longões doem... Mas quem disse que as
pedras de mármore ao serem atingidas pelo cinzel do escultor não sentem dor? Talvez
nunca tenham perguntado isso a elas. Mas as lindas postagens sobre treinos
diários camuflam os sacrifícios e desgastes que precisamos passar por eles para
nos tornarmos corredores, corredores maratonistas, corredores ultramaratonistas...
Se nossos músculos precisam do desgaste para se recuperarem e fortalecerem, é
isto que precisamos fazer com eles: desgastá-los, colocá-los à prova.
Mas não quero que pareça algo
desprazeroso. Apenas quero dizer eu não nascemos prontos, sempre nos tornamos aquilo
que queremos e lutamos para ser... Faço porque gosto do desafio, gosto deste processo
sempre in progress, este vir a ser
constante a que me proponho. Faço porque acredito que na vida temos que ter
sempre uma meta a buscar, seja ela em que área for... A minha, pelo menos por
agora, está na corrida... (Já esteve nos estudos, por exemplo, e era necessária
a mesma e diferente constante preparação até chegar ao fim do doutorado.) E
acredito que após o cavalo, terei outra escultura para tirar de dentro de mim...
Mas isso é assunto para outra crônica e outro tempo e outras preparações e cinzéis
e escultores...
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