MINHAS PRÓXIMAS CORRIDAS

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

A BAHIA QUE ME FEZ MAIS FORTE


"Foi então que aprendi a correr contra as palavras dentro de mim, 
da mesma maneira que aprendi a correr contra o vento" (PEIXOTO, 2008, p. 130).

         
          Antes mesmo de amanhecer, uma turma já acordava ansiosa em Salvador. Havia expectativa no ar. O cheiro que exalava no café da manhã naquele domingo não era o do café, mas da ansiedade. Número de peito preso na blusa, cabelos presos sob a viseira, protetor solar brilhando sobre a pele... E fomos nós desbravar a cidade correndo...
          Dia lindo, sol queimando o azul do céu bem cedinho, e as passadas começaram firmes, mais firmes do que o coração nervoso.  Emoção embolada na garganta mostrava a importância e o peso dos 42 km que estavam por vir. Corações conhecidos estavam por perto. Com certeza também batiam descompassados: fora do compasso das passadas desejosas de asfalto.
          Correr por um lugar desconhecido faz do trajeto uma novidade constante. As ruas de Salvador iam se revelando mais aos pés do que aos olhos.  Sentia a cidade pulsando sob meus pés. Pulsação irregular  dos desníveis do asfalto, pulsação ofegante das pequenas subidas rumo ao Farol, pulsação acelerada das descidas...
          E por 21 km meus pés pisaram parte do asfalto de Dodô e Osmar.  E era o carnaval de Salvador pulsando sob mim...


         Mas, depois do carnaval, a maratona dos pés passou para o joelho e dali para a cabeça... Deixou de ser a rua pulsando sob mim, para ser a dor pulsando dentro de mim. E, por algum tempo, foi quarta-feira de cinzas em Salvador... E a maratona da Bahia escureceu aos meus olhos e ao meu coração. Uma nuvem escura fez o dia ficar cinza por alguns quilômetros. Choveu sobre nós e dentro de mim em pleno Jardim de Alah...
          E então a maratona saiu da cidade e se internalizou em mim. Como se a chuva fizesse com que meus poros sugassem as gotas sobre a pele, carregando com elas os quase 20 quilômetros que estavam por vir. E comecei a correr dentro de mim... Difícil correr dentro da gente: é uma corrida recheada das lembranças de todo o treinamento realizado; repleta de pensamentos ruins que, se não controlados, podem nos derrubar; exigindo equilíbrio entre a dor e o pensamento...

Assim como corremos nas ruas [...], corremos dentro de nós. Na meta, a distância e o peso desta maratona interior serão tão importantes como os quilômetros destas ruas [...].”  
(PEIXOTO, 2008, p. 144).

        E, como numa quaresma, corri o restante da prova em introspecção total. Conversava comigo mesma, tentando vencer o joelho que doía e o medo de não conseguir terminar a prova. 

Imaginei este dia durante todas as vezes em que tive esperança: [...]. Tinha esperança, imaginava este dia e acreditava que não iria ter medo; repetia mil vezes para dentro de mim próprio: não irei ter medo, não irei ter medo [...].” (PEIXOTO, 2008, p. 89).

           Mas eu tive medo...

        O sol abriu novamente, mas só consegui sair da minha “quaresma cinzenta”, livrar-me do meu medo, quando faltavam apenas dois quilômetros para terminar a maratona. Até então, fui levando quilômetro a quilômetro numa negociação constante do físico com a mente. Quando cheguei ao quilômetro 40, vi que ainda conseguiria superar meu tempo em maratonas. Então, foi como se anunciasse uma páscoa para mim. Sem saber como, tive forças para fazer os quilômetros finais com mais vontade de superação.  Ali, entre uma caminhada e outra a cada quilômetro que se completava, atravessei a linha de chegada. Conheci Salvador pelas solas de meus pés. Conheci mais a mim mesma pela vitória da mente sobre o corpo.

"Porque a minha vontade tem o tamanho de uma lei da terra. Porque a minha força determina a passagem do tempo. Eu quero. Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo. Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que se lança para me deter, contra tudo o que se levanta no meu caminho, contra mim próprio. Eu quero. Eu sou capaz (...). Porque a minha vontade me regenera, faz-me nascer, renascer..." (PEIXOTO, 2008, p. 205).


Referência completa do livro de onde as citações foram retiradas: PEIXOTO, José Luís. Cemitério de pianos. Rio de Janeiro: Record, 2008.