"Foi então que aprendi a correr contra as palavras dentro de mim,
da mesma maneira que aprendi a correr contra o vento" (PEIXOTO, 2008, p. 130).
Antes mesmo de amanhecer, uma turma já acordava ansiosa em Salvador. Havia expectativa no ar. O cheiro que exalava no café da manhã naquele domingo não era o do café, mas da ansiedade. Número de peito preso na blusa, cabelos presos sob a viseira, protetor solar brilhando sobre a pele... E fomos nós desbravar a cidade correndo...
Dia lindo, sol queimando o azul do
céu bem cedinho, e as passadas começaram firmes, mais firmes do que o coração
nervoso. Emoção embolada na garganta
mostrava a importância e o peso dos 42 km que estavam por vir. Corações
conhecidos estavam por perto. Com certeza também batiam descompassados: fora do
compasso das passadas desejosas de asfalto.
Correr por um lugar desconhecido
faz do trajeto uma novidade constante. As ruas de Salvador iam se revelando
mais aos pés do que aos olhos. Sentia a
cidade pulsando sob meus pés. Pulsação irregular dos desníveis do asfalto, pulsação ofegante
das pequenas subidas rumo ao Farol, pulsação acelerada das descidas...
E por 21 km meus pés pisaram parte do asfalto de Dodô e Osmar. E era o carnaval de Salvador pulsando sob mim...
E por 21 km meus pés pisaram parte do asfalto de Dodô e Osmar. E era o carnaval de Salvador pulsando sob mim...
Mas, depois do carnaval, a
maratona dos pés passou para o joelho e dali para a cabeça... Deixou de ser a
rua pulsando sob mim, para ser a dor pulsando dentro de mim. E, por algum tempo,
foi quarta-feira de cinzas em Salvador... E a maratona da Bahia escureceu aos
meus olhos e ao meu coração. Uma nuvem escura fez o dia ficar cinza por alguns
quilômetros. Choveu sobre nós e dentro de mim em pleno Jardim de Alah...
E então a maratona saiu da cidade
e se internalizou em mim. Como se a chuva fizesse com que meus poros sugassem
as gotas sobre a pele, carregando com elas os quase 20 quilômetros que estavam
por vir. E comecei a correr dentro de mim... Difícil correr dentro da gente: é
uma corrida recheada das lembranças de todo o treinamento realizado; repleta de
pensamentos ruins que, se não controlados, podem nos derrubar; exigindo equilíbrio
entre a dor e o pensamento...
Assim
como corremos nas ruas [...], corremos dentro de nós. Na meta, a distância e o
peso desta maratona interior serão tão importantes como os quilômetros destas
ruas [...].”
(PEIXOTO, 2008, p. 144).
(PEIXOTO, 2008, p. 144).
E, como numa quaresma, corri o
restante da prova em introspecção total. Conversava comigo mesma, tentando
vencer o joelho que doía e o medo de não conseguir terminar a prova.
“Imaginei este dia durante todas as vezes em que tive
esperança: [...]. Tinha esperança, imaginava este dia e acreditava que não iria
ter medo; repetia mil vezes para dentro de mim próprio: não irei ter medo, não
irei ter medo [...].” (PEIXOTO, 2008, p. 89).
Mas eu tive medo...
O sol abriu novamente, mas só
consegui sair da minha “quaresma cinzenta”, livrar-me do meu medo, quando faltavam apenas dois
quilômetros para terminar a maratona. Até então, fui levando quilômetro a
quilômetro numa negociação constante do físico com a mente. Quando cheguei ao
quilômetro 40, vi que ainda conseguiria superar meu tempo em maratonas. Então,
foi como se anunciasse uma páscoa para mim. Sem saber como, tive forças para fazer
os quilômetros finais com mais vontade de superação. Ali, entre uma caminhada e outra a cada
quilômetro que se completava, atravessei a linha de chegada. Conheci Salvador
pelas solas de meus pés. Conheci mais a mim mesma pela vitória da mente sobre
o corpo.
"Porque
a minha vontade tem o tamanho de uma lei da terra. Porque a minha força
determina a passagem do tempo. Eu quero. Eu sou capaz de lançar um grito para
dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os
corpos, que trespassa o mundo. Eu sou capaz de correr através desse grito, à
sua velocidade, contra tudo o que se lança para me deter, contra tudo o que se
levanta no meu caminho, contra mim próprio. Eu quero. Eu sou capaz (...).
Porque a minha vontade me regenera, faz-me nascer, renascer..." (PEIXOTO, 2008, p. 205).
Referência completa do livro de onde as citações foram retiradas: PEIXOTO, José Luís. Cemitério de pianos. Rio de Janeiro: Record, 2008.
Simplesmente emocionante.....
ResponderExcluirVc transfere em palavras as emoções mais íntimas de uma corredora.....
Vc é uma super vencedora, pois venceu a si mesma. ..venceu a sua mente...
Estou orgulhosa por fazer parte desta evolução. ....