Quando avistei o pórtico de chegada, comecei a chorar... Aqueles quase 70 km gritavam em cada músculo, em cada articulação, em cada pensamento. Era um grito dentro de mim, que se exteriorizava em forma de lágrimas. Lá por dentro eu queria esbravejar, deixar sair tudo o que foi se acumulando durante tantos meses de preparação. Gritava para mim mesma que eu havia conseguido, que todo esforço e disciplina tinham valido a pena. Quando entrei no "gargalo", naquele afunilamento das grades que levam ao pórtico, as lágrimas viraram soluços, que se confundiam com os aplausos de quem assistia à minha chegada. Pessoas que nunca vi e que nunca mais me verão davam-me parabéns, aplaudiam-me como se soubessem o porquê de eu estar ali. Mas não sabiam. Só eu sei. Por mais que eu tente dizer em palavras, o principal não consigo verbalizar. Está guardado aqui. Estará para sempre...
Segui em meu trotezinho, e os metros finais pareciam passar em câmera lenta. Foi então que, ao atravessar o pórtico de chegada, ouvi alguém gritar meu nome. E naqueles segundos de confusão - o alívio do fim, o êxtase da superação, o esgotamento físico - identifiquei rostos conhecidos, rostos que há 8 dias me eram estranhos (exceto um), mas que passaram a ser tão íntimos. E de rostos sorridentes, avistei braços que me aconchegaram naquele instante único. Meu suor, minhas lágrimas, meus soluços foram compartilhados por aquelas pessoas que por uma semana foram companheiras de viagem, amigos de histórias e sonhos. Eles, ali, depois de concluírem a prova deles, cansados, esperando por mim e pelo Rodrigo - que também fazia os 70km - fizeram valer ainda mais a minha vitória. Deixei-me estar nos braços deles por alguns instantes, soluçando minha conquista, meus medos vencidos, minha realização alcançada, meu corpo cansado... Adriana e Florian, Joel, Sandra e Beto, vocês foram de uma importância indescritível. Obrigada!
Escrevendo isso, uma semana depois, ainda vivo o êxtase da corrida. Ontem me falaram que eu ainda pareço meio abobalhada quando conto sobre a corrida. E estou mesmo. As 13 horas e meia de prova ainda pulsam em meu corpo - não tanto no corpo físico, muscular, que respondeu muito bem ao esforço a que foi submetido, mas principalmente no corpo emocional. Algo muda na vida da gente quando passa por experiências como essa que vivi. Não que mude na prática, a vida segue em seu ritmo desenfreado. Mas muda no jeito de vermos e sentirmos a vida e a nós mesmos.
E relembro cada instante da prova: a ida ansiosa e receosa do frio; o encontro com colegas corredores; a largada no escuro; os primeiros quilômetros frios e iluminados por lanterninhas que pareciam vaga-lumes dançando na noite; o despertar do dia, colorindo o horizonte de um laranja roseado (ou seria de um rosa alaranjado?); as subidas (tantas), as descidas (muitas); a paisagem exuberante; o corpo que foi se cansando; a cabeça que teve que ir negociando com o corpo; a emoção que foi sendo controlada; a companhia de dois colegas corredores que viviam, à sua maneira, o mesmo sonho que eu: Jabes e Rodrigo. Passamos grande parte da prova juntos. Foi incrível!
Havia no trajeto uma subida muito íngreme, foi mais de uma hora subindo, subindo... De vez em quando eu olhava para trás para ver o cenário que ia se mostrando daquela altura toda... Lindo! E eu continuava subindo, subindo... Quando cheguei ao topo, pude contemplar aquela paisagem absurdamente exuberante. E comecei a descer, uma descida tão íngreme como foi a subida... Naquele momento eu comecei a chorar. Não era dor, não era medo. Era êxtase. Era prece. Era reconhecimento. Era agradecimento. Ali eu era uma formiguinha, um grão de areia em meio à natureza. Ali eu vi que valeu a pena ter sido tão forte na subida, simplesmente para me sentir tão frágil na descida... Ali foi o auge da prova, não só por ter alcançado o topo, mas por ter alcançado minha sensibilidade... Foi a minha epifania: o súbito momento eu que eu compreendi por que eu tinha que ir correr aquela prova, o momento que me fez sentir a realização de meu sonho, de que o que parecia impossível podia ser conquistado...
O desejo da ultramaratona é muito mais do que a busca da superação física. O físico é apenas o caminho que usamos para ir ao encontro do que é mais forte em nós: nossa essência. Não se explica racionalmente por que fazemos isso, por isso nos chamam de loucos. Realmente não faz sentido aparente passar mais de 13 horas correndo, colocando o corpo tão em seu limite. É um desejo interno, uma vontade de ir cada vez mais adiante para encontrar um momento de êxtase, um momento de realização profunda, um momento de encontro com o que em nós parece sobre-humano. Parece que saímos do corpo e encontramos nosso espírito. Aqueles que me perguntam minha colocação não entendem como é insignificante a classificação diante de tudo o que foi vivido e da metamorfose que se deu em mim. Aqueles que me perguntam se eu ganhei a corrida quase ficam sem resposta - não entendem como ganhei em vida e em humanidade.
E é assim que me sinto até hoje: em sintonia comigo mesma. Sabia que eu ia passar por uma experiência incrível, mas não sabia como ela terminaria. E foi simplesmente fantástico! Sei que quero muito mais - mais em distância, mais em intensidade de vivências. Sei que preciso procurar outros sonhos, traçar novas metas... Continuar essa busca estranha e incrível de mim mesma... No mínimo, voltar lá ano que vem e tentar os 100 km. Quem sabe? Ou sonhar outros continentes... E outras paisagens. Outras emoções...
Que texto ótimo querida prof Lílian! Parabéns por mais esta conquista :) A sensação que tive ao ler foi a de que estava correndo junto, só que sentadinha aqui no sofá rs SUCESSO e um forte abraço. Juliane
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