MINHAS PRÓXIMAS CORRIDAS

sábado, 17 de janeiro de 2015

DE COISAS INOMINÁVEIS...

Por que a Patagônia? Já me perguntaram algumas vezes... Além de serem 70 km, ainda precisa ser de montanhas e no frio? Já me perguntaram também... Na verdade, nunca parei para pensar no porquê da Patagônia, porque não é muito racional... 
Tenho estado muito emotiva com essa minha empreitada. Acho que a mudança do ano trouxe a proximidade da data. Pensar que três meses me separam do grande dia e voltar aos treinos intensos têm me feito temer e desejar cada dia mais o mês de abril. Constatar a pequenez humana diante da grandeza do cenário me impressiona. As fotos da edição passada tiram de mim lágrimas de emoção.  Choro de verdade quando vejo o que vou presenciar. Como se eu “pré-sentisse” o que vai ser estar lá.
 
Se me perguntarem o que eu busco com isso (que para muitos é uma loucura), acho que as palavras não alcançariam uma resposta tão satisfatória quanto as lágrimas que me saem apenas de ver a paisagem de lá. Dá um nó na garganta. Lembro a professorinha do interior de Minas que saiu de casa obesa para fazer doutorado e começou a correr. Descobriu na corrida uma vida que o mundo acadêmico sozinho não preenchia. Não é provar nada para ninguém; nem para mim mesma. Não é vencer a natureza; é entrar em comunhão com ela. É buscar algo que não se nomeia. Algo que está aqui dentro de mim pedindo para viver e que precisa ter a chance de sair de mim e se expandir para voltar para mim e me completar um pouco mais...
 
Há um trecho que fala sobre ultramaratonistas que diz um pouco sobre isso:
“Mas como afirmam poetas, apóstolos e filósofos desde os mais remotos tempos, existe muito mais na vida que a simples lógica e o bom senso. Os ultramaratonistas percebem isso instintivamente. E eles sabem algo mais que está perdido no sedentarismo. Eles entendem, talvez mais que ninguém, que a porta para o espírito se abrirá  com os esforço físico. Ao correr tão longas e extenuantes distâncias eles respondem uma chamada do mais profundo do seu ser – uma chamada que responde quem eles realmente são.” (David Blaikie)
 
Eu ainda não sei o que é ser uma ultramaratonista. Sei o que é me preparar para tentar ser. E me lembro, quando treinei para minha primeira (e segunda e terceira e quarta) maratona, que lia muito que treinar para maratona significaria só pensar a respeito dela, abdicar de muitas coisas por ela, ficar chata e só falar sobre ela, dedicar de verdade aos treinamentos... E agora? Repito a mesma (mas tão diferente) coisa. Vivo, respiro os 70 km, só que mais solitária e introspectivamente. E nem tenho noção do que é estar preparada para tal empreitada. Sigo minhas planilhas com afinco. Tenho feito tudo o que me é recomendado. Mas o que é estar preparado? Não sei mesmo! Acho que nunca vou me sentir preparada de verdade. Mas acho que tenho ouvido essa “chamada do mais profundo do meu ser”. Preciso ir lá e viver essa experiência para sentir que o corpo aguenta e completar minha alma.

Para alguns é sinônimo de sofrimento desnecessário. Talvez alguns outros me entendam que, apesar do sofrimento (sim, porque há sofrimento), é um modo de aventurar-se  um pouco pela vida afora e muito pela vida “adentro”. É a realização íntima pela superação física.
 
É a professorinha do mundo das Letras buscando se completar com suor e poesia.
 

 


 

domingo, 11 de janeiro de 2015

DE ESCULTURAS... E CORREDORES... E ULTRAMARATONAS...

“Mas você não tem medo?”
Eu estou morrendo de medo... Mas vou...

Ouvi essa pergunta esses dias, a respeito dos 70 km da Patagônia. É claro que tenho medo! Sempre terei, todas as vezes em que a corrida for mais do que um simples treino de verão no calçadão. E como é bom ter esse medo! Talvez fosse melhor dizer respeito. Respeito as corridas. As longas em especial, que são as que me atraem. Respeito-as demais, porque elas exigem de mim a constante capacidade de superação. Ter medo e respeitar, entretanto, motivam-me a me preparar, a procurar estar minimamente pronta para as empreitadas que seleciono. Não são as corridas-alvo que me fazem, elas apenas coroam a minha formação. É o dia a dia que me torna uma corredora, que vão me moldando, formando-me, física e psicologicamente.

Todas as vezes em que posto nas redes sociais: “partiu, academia!”, “treino de tiros”, “treino de areia”, “treino de morro”, “treino no Convento”, “longão de 30”, “37”, estou tentando me transformar na ultramaratonista que tanto quero ser. Cada dia é como se eu estivesse percorrendo alguns metros da corrida-alvo.


Michelângelo, o escultor da famosa estátua de Davi, quando lhe perguntaram como ele conseguia esculpir um cavalo em uma pedra de mármore, disse que o cavalo já estava lá, bastava a ele retirar do mármore o que não era parte do cavalo. Assim penso que é o trabalho de preparação. Sinto que, pelas minhas características, pela minha personalidade, há uma ultramaratonista dentro de mim. É preciso fazê-la aparecer por meio do trabalho lento e cuidadoso de tirar de mim o que há de excesso e ir lapidando. Devagar, com cuidado, para que não seja tirado nada que possa fazer falta; para que a ultramaratonista saia o mais perfeito possível que minha pedra de mármore permitir.

É trabalho diário... Faz 117 dias que considero que o projeto ultramaratona começou. Faço registros diários sobre os treinos. Anoto o rendimento e alguma ou algumas impressão(ões) sobre o treino: se foi bom ou ruim, o que senti, comparo com anteriores... Agora que passei por três semanas de descanso, reduzindo quilometragem e apenas fazendo treinos leves de manutenção (acho que posso dizer assim), parei para rever algumas anotações desses 117 dias. Claro que houve dias bons e ruins. Às vezes penso que os dias considerados ruins são mais importantes do que os bons, pois eles ensinam mais. Eles apontam as fragilidades que precisam ser mais trabalhadas...

Amanhã retomo o ritmo normal dos treinos. Não sei o que me aguarda. É opção da minha treinadora não me passar a planilha antecipadamente. Ela vai me passando aos poucos. Mas imagino que o que vem pela frente não vai ser fácil. Na verdade, precisa não ser fácil. Faltam três meses para a corrida e sei que ainda tenho que sofrer muito nos treinos para a ultramaratonista começar a aparecer na pedra de mármore. Às vezes a vislumbro, como uma sombra, um vulto lá dentro do bloco de pedra, como se o mais grosso já tivesse sido retirado. Ela está prestes a começar a aparecer, mas o trabalho mais minucioso está por vir. Retirar a porção certa, sem ferir; sem atingir o que já está formado. A escultora-chefe (há outros escultores no processo: nutricionista, fisiatra...) é minha treinadora, mas, diferentemente de Michelângelo, não foi ela que foi ao cavalo, o cavalo foi até ela pedindo para sair do bloco de mármore. E, também diferentemente do mestre renascentista, ela dá o comando, mas quem é responsável pelo cinzel sou eu. É quase uma autolapidação, porque quem faz o treino ou não sou eu, se sigo o comando ou não sou eu, se como adequadamente ou não sou eu, se me suplemento segundo as orientações ou não sou eu... Com o tempo tenho aprendido a usar o cinzel adequadamente, vou amadurecendo a arte de esculpir em mim a corredora que a cada dia vou querendo ser...

Faltam três meses... Mais especificamente 89 dias... Já mudei muito. E tenho muito ainda a mudar. O medo vai me acompanhar até o grande dia, porque os treinos de tiros doem, o treinos de areia doem, os treinos de morro doem, os longões doem... Mas quem disse que as pedras de mármore ao serem atingidas pelo cinzel do escultor não sentem dor? Talvez nunca tenham perguntado isso a elas. Mas as lindas postagens sobre treinos diários camuflam os sacrifícios e desgastes que precisamos passar por eles para nos tornarmos corredores, corredores maratonistas, corredores ultramaratonistas... Se nossos músculos precisam do desgaste para se recuperarem e fortalecerem, é isto que precisamos fazer com eles: desgastá-los, colocá-los à prova.

Mas não quero que pareça algo desprazeroso. Apenas quero dizer eu não nascemos prontos, sempre nos tornamos aquilo que queremos e lutamos para ser... Faço porque gosto do desafio, gosto deste processo sempre in progress, este vir a ser constante a que me proponho. Faço porque acredito que na vida temos que ter sempre uma meta a buscar, seja ela em que área for... A minha, pelo menos por agora, está na corrida... (Já esteve nos estudos, por exemplo, e era necessária a mesma e diferente constante preparação até chegar ao fim do doutorado.) E acredito que após o cavalo, terei outra escultura para tirar de dentro de mim... Mas isso é assunto para outra crônica e outro tempo e outras preparações e cinzéis e escultores...